
Este mural site-specific foi especialmente criado para a Quinta do Quetzal. Com as suas camadas de significados (ocultos), cores terrosas profundas e inúmeros símbolos, funciona como um prisma através do qual se observa a paisagem envolvente de colinas e vinhedos.
O mural ecoa a paisagem ondulante que se vislumbra pelas janelas. As colinas ondulantes continuam em tinta, como bulbosas montanhas verdejantes, com coroas aos seus pés e chamas nos cumes. Noutros tempos, os topos das colinas próximas eram iluminados por fogueiras para assinalar a fronteira com Espanha, um brilho quente que emanava deste lugar geopolítico de conflito. Quando o rei português D. Sebastião desapareceu em batalha no século XVI, os seus seguidores nunca perderam a esperança no seu regresso. Tornou-se um "rei adormecido sob a montanha", figura recorrente do folclore europeu, um símbolo do desejo de que o passado possa mudar o presente.
À medida que se avança pelo mural, deparamo-nos com camadas geológicas que refletem uma história rica. Linhas cor-de-laranja e rosa que atravessam o mural têm por base uma técnica de construção local herdada dos Romanos. Os dois grandes vasos na metade inferior do mural, “subterrâneos”, são Talhas — recipientes utilizados pelos Romanos para produzir vinho. Nesta região, o passado romano é outro rei adormecido, que continua a moldar persistentemente o presente a partir do além. Foram os Romanos que aqui introduziram as vinhas, bem como técnicas de construção e fermentação que perduram até aos dias de hoje.
Bosmans pode apontar para a persistência do passado romano e o charme narrativo das batalhas medievais, mas expõe também a relatividade da história humana. Uma secção de cor distinta sugere uma colina sob o solo, referindo-se à história profunda da região. Poderá até ser interpretada como mais uma variante do rei adormecido. As imensas forças geológicas que moldaram esta região repousam agora, mas continuam a determinar o seu clima, relevo e solo — as encostas suaves, os sobreiros e, em última instância, a presença humana.
O mural combina a tradição local com a história profunda da paisagem e com pormenores da atualidade. Cauteloso em relação à nostalgia, Bosmans incluiu dois símbolos pessoais que refletem a sua abordagem intuitiva e irreverente ao passado. Primeiro, o pica-pau, que escava pelas camadas dendrocronológicas de uma árvore até finalmente colocar o seu ovo no núcleo mais antigo. O burro e a rosa são livremente inspirados em O Asno de Ouro, de Apuleio, no qual um jovem é amaldiçoado e transformado num burro. É uma coletânea de histórias sobre metamorfose: uma alusão à idiossincrática coleção de histórias de Bosmans.
Descendo as escadas, encontramos na parte inferior do mural um morcego a hibernar perto de uma das Talhas. Este contraponto ao rei adormecido representa uma promessa. Nem toda a história tem de ser desenterrada. Algumas coisas ficam por desejar.
Kasper Bosmans (1990, Lommel, Bélgica) é conhecido pelas suas abordagens multifacetadas e não convencionais à criação artística, com obras que vão da escultura e instalação à pintura e desenho. Incorpora frequentemente heráldica, folclore, narrativa e simbolismo visual em obras lúdicas e minimalistas, para revelar e reinventar as narrativas culturais que moldam as nossas vidas. Nada está fora do alcance, podendo tudo servir de matéria, uma vez que o artista recorta e cola motivos, símbolos e imagens de diferentes histórias, culturas e sociedades, com uma afinidade particular pelo obscuro, queer e marginalizado. Tudo se mistura num caldeirão de significados, antigos e contemporâneos, pessoais e universais: uma reflexão única e multifacetada sobre a complexidade do mundo.