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Espinosa regressa à Vidigueira

18/04/2025 - 30/03/2026

Eylem Aladogan, Thierry de Cordier, Keith Edmier, Olafur Eliasson, Simon Fujiwara, Thomas Hirschhorn, Roni Horn, Tetsumi Kudo, Kinke Kooi, Job Koelewijn, Robert Longo, Cristina Lucas, Navid Nuur, Falke Pisano, Anri Sala, Fernando Sánchez Castillo, Emma Talbot

Spinoza returns to Vidigueira

Segundo Espinosa, a nossa perceção da realidade é moldada pelo nosso ponto de vista individual e pelas ferramentas que utilizamos para compreendê-la. Quando a nossa perspetiva é limitada ou até mesmo dogmática, apenas apreendemos uma parte restrita da realidade. O verdadeiro conhecimento do mundo advém da troca ativa e contínua de pensamento livre.
 
A grande arte também desafia a nossa perspetiva sobre o mundo. E não é por acaso que muitos artistas se inspiraram em Espinosa, cujos textos podem ser interpretados como uma reflexão sobre racionalismo ou metafísica, ateísmo ou panteísmo, democracia ou totalitarismo. Parece haver um Espinosa para todos os gostos. Os artistas desta exposição exploram diversas reflexões de Espinosa. Convidam o subconsciente a expressar-se e celebram a nossa capacidade de raciocínio. Encontram formas de nos orientarmos dentro de um todo maior, ou até de esbater as fronteiras entre corpos humanos e não-humanos, revelando uma sensualidade partilhada com o mundo natural. Alguns desafiam por completo os binarismos — de género, entre corpo e espírito, ou entre natureza e Deus.

Num momento em que a polarização e as alterações climáticas pairam sobre nós, a filosofia de Espinosa — uma filosofia do pensamento livre, da ética e da interconexão — revela-se mais pertinente do que nunca. Enquanto judeus portugueses, a própria família de Espinosa foi perseguida por motivos religiosos e teve de fugir para os Países Baixos. Exibir estas obras no Quetzal Art Center, na Vidigueira – terra natal do pai de Espinosa – torna esta exposição ainda mais especial.

Curadoria de Aveline de Bruin.

(Textos: Anna Lillioja)

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A Vida de Spinoza – Da Vidigueira a Amesterdão


Bento de Espinosa, também conhecido como Baruch ou mais tarde Benedictus, nasceu em 1632, em Amesterdão, filho de refugiados judeus portugueses. O seu pai, Miguel d’Espinosa, filho de um rico comerciante, era natural da Vidigueira, onde a família viveu durante gerações. Após a expulsão dos judeus durante a Inquisição em Espanha e Portugal, em 1492 e 1497, muitos – incluindo os Espinosa – fugiram da Península Ibérica. Fizeram uma breve paragem em Nantes e acabaram por encontrar refúgio na relativamente tolerante Amesterdão. A cidade, desde a queda de Antuérpia, tornara-se o novo centro marítimo e comercial, e um lugar onde a vida judaica podia, com cautela, florescer novamente.

Espinosa cresceu no vibrante bairro judaico de Amesterdão, ‘Vlooienburg’, habitado maioritariamente por judeus sefarditas, que aí construíram as suas sinagogas – a grande Sinagoga Portuguesa ainda hoje se mantém de pé. Foi educado na tradição judaica, mas depressa se deixou cativar pelas novas ideias radicais da sua época – especialmente pela filosofia de Descartes e pelas descobertas da ciência emergente.

Em 1656, Espinosa foi excomungado da comunidade judaica, provavelmente devido às suas ideias pouco ortodoxas. A excomunhão significava uma exclusão total; por outro lado, também lhe ofereceu liberdade para pensar e escrever sem restrições religiosas. Aprendeu latim, integrou um círculo de livres-pensadores e cientistas, e sustentava-se a polir lentes ópticas, utilizadas, entre outros, pelo reputado cientista e astrónomo Christiaan Huygens. Não apenas os seus pensamentos, mas também as suas lentes, ofereciam às pessoas uma visão mais profunda da vida.

Embora cauteloso em relação à publicação das suas ideias, Espinosa ousou expressar-se. O seu Tratado Teológico-Político, publicado anonimamente em 1670, foi uma ousada defesa da liberdade de pensamento e de expressão, mantendo ligações estreitas com amigos e intelectuais de toda a Europa. Viveu uma vida modesta e independente, preocupando-se mais em alimentar a mente do que entregar-se aos prazeres do corpo. Diz-se que, nos últimos anos de vida, se alimentava apenas de passas e papas de leite. Alguns chamavam-lhe ‘Senhor Espinafre’, em alusão ao vegetal que se dizia nutrir o cérebro.

Espinosa morreu em 1677, aos 44 anos, muito provavelmente de tuberculose. Acredita-se que o pó produzido pelo trabalho a polir lentes tenha enfraquecido os seus pulmões e contribuído para o debilitar da sua saúde. A sua obra filosófica – considerada perigosa na altura – foi rapidamente banida, mas continuou a circular clandestinamente. Com o tempo, as suas ideias ajudaram a moldar a filosofia, a ciência e a democracia modernas.

E, de certa forma, tudo começou aqui, na Vidigueira, terra natal do seu pai – onde uma mente radicalmente independente lançou raízes.

>> Ler mais sobre a filosofia de Espinosa.

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Cristina Lucas

Em To the Wild, Cristina Lucas reinterpreta um antigo método de humilhação e exílio. No método de “alcatrão e penas”, era cortado cabelo de uma prisioneira, o seu corpo coberto de alcatrão e depois de penas, sendo em seguida exibida pelas ruas e deixada fora da cidade. Outrora um castigo comum, neste trabalho de Lucas o ritual de exílio transforma-se num meio de reconexão com a natureza e de reencontro com o lugar que se ocupa na ordem natural das coisas – uma ordem que podemos, segundo Espinosa, sentir através da forma mais direta de pensamento: a intuição. A própria artista escreve que os pensamentos de Espinosa a acompanharam no seu processo de ligação profunda à natureza.

Espinosa também foi excomungado da sua sociedade: a comunidade judaica de Amesterdão. As suas ideias desafiavam as tradicionais visões sobre poder e religião vigentes naquela comunidade. Ainda assim, acreditava que as sociedades são uma extensão natural da natureza humana. Tal como os indivíduos são partes indispensáveis de Deus/Natureza, as sociedades também o são. Formam-se a partir da ligação entre necessidades e desejos recíprocos. No entanto, a obediência a uma sociedade ou Estado deverá estar enraizada na razão e no interesse comum, e não numa submissão cega.

Embora a intuição seja o nosso conhecimento mais imediato do mundo, Espinosa defendia que devemos usar a razão para compreender as causas do que sentimos ou experienciamos. Só assim poderemos libertar-nos de uma vida passiva, guiada pelas emoções. Ao mesmo tempo, a sociedade em que vivemos pode obscurecer o nosso raciocínio, tornando necessário libertar-nos do seu pensamento dogmático.

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Navid Nuur

As obras de Navid Nuur envolvem frequentemente elementos naturais – cinzas, luz, ar, lágrimas – para criar experiências que despertam o maravilhamento. Chegaram mesmo a chamá-lo de alquimista dos tempos modernos, pela forma como funde materiais em novas substâncias. No entanto, como o próprio artista sublinha, a sua arte não é esotérica. Oferece, antes, um ponto de partida para a reflexão.

Espinosa provavelmente teria apreciado o trabalho de Nuur por várias razões. Espinosa rejeitava a existência de milagres, argumentando que aquilo que as pessoas percebem como maravilhoso são apenas fenómenos naturais e científicos ainda não compreendidos. Ambos partilham também um profundo respeito por todos os elementos materiais como partes iguais de um todo maior – nenhum sendo intrinsecamente superior aos outros. Como Nuur disse uma vez, não vê diferença entre trabalhar com um ser humano, uma sala, um feixe de luz ou uma igreja.

Uma afinidade final entre o filósofo e o artista revela-se na obra Ours de Nuur, que apresenta uma imagem microscópica de uma lágrima humana – presumivelmente a sua. Visto de perto, o sal seco cristalizou-se em pequenas formações que lembram paisagens. A lágrima transforma-se num mundo em si mesma. Numa carta a Henry Oldenburg, Espinosa usa uma metáfora semelhante para explorar a noção de perspectiva. Ele imagina um verme do sangue a viver numa gota de sangue, percebendo as pequenas partículas dessa gota como uma realidade autónoma. O verme, devido à sua visão limitada, desconhece que existe dentro de um corpo maior.

Da mesma forma, quando examinamos uma lágrima amplificada por uma lente, descobrimos cristais, bactérias, invisíveis a olho nu. Aquilo que parece simples torna-se complexo, dependendo da perspectiva e das ferramentas que usamos. Se esquecermos isto, nunca compreenderemos verdadeiramente a natureza do mundo. Pois, neste mundo complexo e interligado, tudo depende de tudo o resto e nada pertence realmente apenas a um de nós; pertence, antes, a todos nós, a Ours.

Fernando Sánchez Castillo

O que é a paz? Uma pergunta de enorme relevância no mundo de hoje, onde não só guerras no sentido mais clássico continuam a devastar países, como também nações aparentemente pacíficas enfrentam formas híbridas de conflito: desinformação, sabotagem, divisão social. Em Guernica Spinoza, de Fernando Sánchez Castillo, um néon pisca em código morse, soletrando:

A PAZ NÃO É UMA AUSÊNCIA DE GUERRA | É UMA VIRTUDE | UM ESTADO DE ESPÍRITO | UMA PREDISPOSIÇÃO PARA A BONDADE | SEGURANÇA | JUSTIÇA |

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Sánchez Castillo inspira-se diretamente nas palavras de Espinosa que, no seu Tratado Político, escreveu: “A paz não é simplesmente a ausência de guerra, mas uma virtude que nasce da força da alma.” Espinosa acredita que a paz não é um estado passivo, mas dinâmico, um esforço constante de pensamento e ação orientado para alcançar uma sociedade pacífica. O título Guernica remete para uma das mais célebres obras de arte contra a guerra: Guernica de Pablo Picasso.

Nas suas obras, Sánchez Castillo examina como os processos históricos são sempre influenciados e definidos – mas também corrompidos – pela criação e uso de uma “imagem estética”. Em código morse, uma mensagem tem de ser elaborada, transmitida e descodificada com precisão por quem a recebe. Trata-se de um processo recíproco e cuidadoso – tal como a construção da paz. Esta obra ganha ainda uma outra camada de significado, porque o código morse é tradicionalmente usado em situações de perigo.

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Keith Edmier

O escultor americano Keith Edmier começou a sua carreira como designer de efeitos especiais no cinema, depois de ter aprendido a fazer dentes de vampiro num trabalho que tinha depois da escola num laboratório dentário. As suas obras continuam a basear-se na arte de criar mundos verosímeis, inspirando-se na vida quotidiana. Nesse sentido, Edmier ecoa a crença de Espinosa de que uma imagem verdadeira deve pulsar com vida – pois tanto a arte como a natureza fluem da mesma origem. A escolha de materiais de Edmier é tão pouco convencional quanto a filosofia de Espinosa foi radical: acrílico dentário, borracha de silicone, cinza vulcânica.

Na obra Your Erogenous Zones, o artista esculpiu dois cavalos-marinhos hiper-realistas num enlace íntimo. As algas a que se prendem assemelham-se a filamentos de ADN. As formas entrelaçadas da escultura evocam a ideia de Espinosa sobre a interconexão de todas as coisas.

Embora Espinosa não considerasse o erotismo ou o sexo como manifestações da razão – referia-se muitas vezes a eles em termos de ciúme e obsessão, mais do que amor –, defendia que tudo existe num espectro. Categorias como masculino e feminino não reflectem qualquer verdade absoluta, sendo antes construções da nossa compreensão. Os cavalos-marinhos simbolizam essa não conformidade de género: é o macho que carrega e dá à luz as crias. Nesse sentido, poderiam muito bem ter correspondido à visão de Espinosa.

Job Koelewijn

Na parte final de Ética, Espinosa sugere que os seres humanos podem alcançar uma compreensão intuitiva do mundo – e de si mesmos – como eternos. De modo semelhante, o artista holandês Job Koelewijn sugere que não somos apenas seres que observam o tempo ou percepcionam a realidade, mas partes integrantes de um universo intemporal.

Para Koelewijn, realidade e representação são inseparáveis – a arte deve incorporar a mesma força do mundo que reflecte. As palavras de Espinosa servem como blocos de construção literais em várias das suas obras – por exemplo, ele grava-se a ler a Ética em cassetes, que são depois reunidas numa escultura.

Na animação Collage/Storyboard, o artista cria uma síntese pessoal dos textos que mais o inspiram. Camadas de citações em papel acumulam-se umas sobre as outras, formando uma espécie de biblioteca excêntrica e contínua, ligando Espinosa ao vestuário tradicional de Spakenburg, a métodos históricos de purificação, e até à série de livros infantis Dickie Dik. Um recorte circular atravessa as múltiplas camadas de papel, fazendo lembrar os anéis de crescimento de uma árvore – símbolo de crescimento, acumulação e expansão. Em vez de usar a voz, Koelewijn deixa o corpo falar: o diâmetro de todas as suas obras circulares corresponde exatamente à sua altura – 1,86 metros. A obra coloca lado a lado um retrato de Espinosa e um pêndulo.

Em Nursery Piece, páginas da Ética são o alicerce da instalação. Enquanto o cheiro do eucalipto purifica os nossos sentidos, um padrão em mandala feito de areias coloridas deixa os textos de Espinosa gravados na mente do espectador. A mandala é meticulosamente construída e apagada em cada exposição, tal como num verdadeiro ritual de mandala. Uma ligação mais profunda entre a filosofia de Espinosa e o Budismo fica ao critério de quem observa. A beleza frágil desta peça – a areia pode ser facilmente soprada – recorda-nos a impermanência da natureza, mas também a sua circularidade.

Robert Longo

Através das portas, entramos em mundos tão familiares quanto desconhecidos. Em Untitled (exterior street door with name plate and peep hole) de Robert Longo, um desenho sombrio de uma porta de entrada, esta sensação de mistério é intensificada. Ao aproximarmo-nos, descobrimos o nome na placa: Sigmund Freud. Abre-se assim um limiar ainda mais simbólico – uma promessa de acesso ao mundo privado do pai da psicanálise. De forma semelhante, a vida interior de Espinosa é também familiar e desconhecida. Os seus pensamentos tornaram-se conhecidos através dos seus escritos, mas a sua vida relacional e privada permaneceu um enigma. Especialmente nos últimos anos, Espinosa viveu bastante recolhido numa aldeia nos arredores de Leiden, confessando que os seus amigos o visitavam com mais frequência do que gostaria.

A porta evoca também uma passagem mais profunda, que reflete as explorações de Freud pelo inconsciente. Aponta para a ideia freudiana do subconsciente como um espaço escondido para lá da consciência quotidiana. O óculo da porta oferece um pequeno vislumbre do que se encontra para além do visível, do consciente.

Esta divisão entre o consciente e o inconsciente é um conceito que Freud partilha com Espinosa. Também Espinosa acreditava que as nossas ações são em grande parte impulsionadas por motivos ocultos – paixões e afetos de que muitas vezes não temos consciência. Ambos acreditavam que, através da razão e do autoconhecimento, podemos trazer à luz essas motivações inconscientes e começar a agir, em vez de apenas sermos levados a agir.

O desenho de Longo baseia-se em fotografias a preto e branco tiradas por Edmund Engelman do apartamento de Freud na Berggasse 19, em Viena, pouco antes de Freud fugir da cidade – tal como a família judaica portuguesa de Espinosa teve de fugir da Vidigueira. O exílio de Freud e a ascensão dos nazis confirmaram-lhe até que ponto as pessoas continuam a ser joguetes das suas paixões e agressões inconscientes, em vez de assumirem responsabilidade e agirem com base na razão. Como já tinha escrito em O Mal-Estar na Civilização, de 1929: “A maior parte das pessoas não quer verdadeiramente a liberdade, porque a liberdade implica responsabilidade, e a maioria das pessoas teme a responsabilidade.”

Untitled (Virgil, after H.B.) mostra a parte de trás dos painéis laterais de O Jardim das Delícias Terrenas de Bosch, que representam o terceiro dia da criação da Terra. A imagem é extraordinária na medida em que apresenta o mundo como uma entidade independente dentro de uma esfera transparente, em vez de um globo sustentado na mão de Deus – a representação mais comum à época. Esta visão ressoa com a ideia de Espinosa da Natureza, não como algo criado por Deus, mas como a própria fonte de toda a vida – e de Deus. A representação do mundo como uma entidade autónoma pode também enfatizar a responsabilidade humana pelas suas próprias ações no mundo, em vez de depender da misericórdia divina – tal como defendiam Espinosa e Freud.

Kinke Kooi

A artista holandesa Kinke Kooi gosta de traçar paralelos entre o corpo humano e outros corpos na natureza: celulite e casca de árvore, formas espiraladas intrincadas que tanto podem ser corais de águas profundas como intestinos humanos. Um paralelo intrigante nas vidas de Kooi e de Espinosa é a liberdade que ambos encontraram através da rejeição por parte do sistema estabelecido – Kooi pelo mundo da arte, Espinosa pela comunidade religiosa judaica. Na escola de arte, os professores de Kooi consideravam o seu estilo demasiado pessoal, pouco abstracto e excessivamente feminino. Para muitos, essa era razão suficiente para não a levarem a sério enquanto artista.

Contudo, essa rejeição deu a Kooi a liberdade para seguir verdadeiramente o seu próprio caminho, livre de expectativas. Tal como Espinosa, que, uma vez excomungado da sinagoga, pôde expressar mais livremente as suas ideias. A morte do pai marcou também um ponto de viragem, após o qual Espinosa começou a partilhar mais as suas crenças. Talvez o tenha feito por respeito a Michael Espinosa, que teve de fugir da sua amada Vidigueira para poder praticar o Judaísmo sem restrições nem perseguições.

A obra 2 Onbenullen pode ser traduzida como 2 Totós. A palavra totó é frequentemente usada para designar uma pessoa tonta ou ingénua. Mas Kooi representa os seus onbenullen de forma mais literal: como figuras de desconhecimento e de uma inocência nua. A justaposição do rabo de uma mulher com o de uma vaca pode, da mesma forma, ser lida como algo simplista, num sentido negativo. Mas isso não acontece apenas quando partimos do princípio de que os humanos são superiores a todas as outras criaturas? Se virmos todos os seres como iguais – como modos de um só Deus/Natureza, tal como Espinosa acreditava – talvez consigamos reconhecer também a simplicidade positiva de dois seres vivos, semelhantes na sua nudez.

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Thierry de Cordier

Os desenhos do filósofo e artista Thierry de Cordier parecem representar tudo e nada ao mesmo tempo. E é precisamente aí que reside o seu poder hipnótico: as formas indistintas convidam cada espectador a tornar a experiência inteiramente sua. Tal como num teste de Rorschach, talvez o desenho não se limite a aparecer diante de nós, mas sejamos nós a aparecer dentro do desenho.

As formas suaves e sombrias sugerem uma afinidade primordial entre estas criaturas. A sua imanência – que por vezes emerge quase literalmente do fundo, como em Dos, je… – recorda a crença de Espinosa de que toda a vida, pensamento e matéria são apenas modos de uma mesma fonte vital: Natureza/Deus. Tudo existe por breves instantes sob uma forma, apenas para se dissolver e transformar continuamente noutra – em vez de serem criações distintas de um Deus transcendente, convocadas a partir do nada. Espinosa acreditava que desta maneira poderíamos sentir e conhecer-nos como eternos. Sobre isto escreveu:

“Na medida em que a mente vê as coisas sob o seu aspecto eterno, ela participa da eternidade.”

Espinosa e De Cordier foram ambos considerados figuras sóbrias. Espinosa tinha pouco interesse nos prazeres terrenos, e De Cordier era conhecido como um contemplador sereno que procurava refúgio na natureza e afirmava que o lugar do artista é à margem. Isso poderá parecer paradoxal, tendo em conta que foram indivíduos que falavam de unidade, de interconexão eterna e da fusão de todas as coisas. O seu recolhimento não era, no entanto, uma recusa de se envolver com a vida, mas, antes, a busca por uma ligação verdadeira, fora do turbilhão do quotidiano.

Roni Horn

Clowd & Cloun é uma série de 32 fotografias que alternam entre imagens de nuvens e palhaços. A obra tem origem numa má interpretação de Roni Horn da canção Send in the Clowns, de Stephen Sondheim – frequentemente confundida com Send in the Clouds. Ao utilizar grafias obsoletas de ambas as palavras, a artista destaca a sua proximidade linguística e sugere um tipo de troca ou cruzamento entre as duas.

Com esta obra, Horn explora a relação entre fenómeno e aparência. Quando é que algo existe verdadeiramente? Ou será que o convocamos à existência através do pensamento? Uma nuvem, por exemplo, não é um objeto estável ou tangível – dissolve-se, muda de forma e, na realidade, não tem cor. “Na verdade”, explica Horn, “os dois objetos são realidades imateriais. Um inserido no tecido da natureza e o outro no tecido da humanidade, mas ambos funcionam exclusivamente através da aparência. Não têm outra vida. Foi assim que se juntaram.”

A natureza da aparência é também central na filosofia de Espinosa, que acreditava que todas as coisas – vivas ou inanimadas – são expressões de uma única substância: Natureza/Deus. Esta substância única revela-se de muitas formas: como água, um ser humano, uma pedra. Cada modo pode ter atributos diferentes – a água pode ser quente, profunda, evaporada, e assim por diante. A par desta manifestação física, existe o mundo do pensamento, através do qual a substância também existe como ideia. Pelo pensamento, a água torna-se rio ou chuva, e adquire significados culturais e pessoais.

Em Clowd & Cloun, as imagens mudam gradualmente de uma para outra, tornando-se mais difusas, mais enevoadas – como se cada uma abrisse espaço para a entrada da outra, para se fundirem. Parecem dissolver-se numa origem partilhada: Deus/Natureza.

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Olafur Eliasson

Situarmo-nos no mundo e na natureza é um tema central na obra de Olafur Eliasson. As suas instalações não são apenas para ser observadas – existem para ser vividas e experienciadas, criando ambientes imersivos. 360 Degree Compass utiliza um íman para guiar uma agulha de madeira oblonga ao longo do eixo norte-sul. A sua forma tridimensional torna o ato de nos orientarmos não apenas visível, mas físico – levando-nos a caminhar à sua volta e até a agacharmo-nos por baixo dela. Recorda-nos a própria Terra, a flutuar livremente no espaço.

Nós, enquanto humanos, desenvolvemos bússolas para nos orientarmos – norte, oeste, sul, este. Os pássaros e as abelhas sentem o campo magnético da Terra nos seus corpos. Talvez, se tentarmos, também possamos desenvolver um sentido intuitivo do nosso lugar no mundo. Espinosa acreditava que sim. Ele achava até que a intuição é a nossa forma mais elevada de conhecimento, e que existe precisamente para isso: para compreendermos como nos encaixamos no todo maior.

Para Espinosa, a intuição não era algo irracional ou enigmático – conotação que por vezes tem nos dias de hoje. Pelo contrário: ele acreditava que era uma perceção direta das verdades que se encontram nos padrões intrincados e ordenados da natureza. Como escreveu: “Nada na Natureza é aleatório. Uma coisa parece aleatória apenas pela incompletude do nosso conhecimento.”

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Anri Sala

A thousand windows to The world of the Insane [Mil janelas para O mundo dos Loucos] de Anri Sala é um conjunto de 66 fotografias a preto e branco (das quais 16 estão expostas) realizadas pelo artista em 1992 em Tirana. As fotografias são acompanhadas por uma lista de 135 novos jornais que surgiram após a abertura do país em 1990 e o fim da censura.

A explosão da liberdade de expressão – como se se retirasse a rolha de uma garrafa sob pressão – na obra reflecte a influência de Espinosa, que foi um defensor da liberdade de expressão e da razão face à repressão. A filosofia de Espinosa teve, em particular, uma forte influência sobre pensadores e no desenvolvimento das sociedades democráticas. A liberdade de expressão, a razão e a compreensão eram centrais no seu trabalho. Embora tenha acabado por ser excomungado pela sua crítica ao pensamento religioso e político dogmático, o próprio filósofo questionou-se sobre a forma correta de expor estas ideias, sem pressionar demasiado. Demonstrando uma certa cautela, publicou os seus textos apenas em latim, e não em neerlandês, uma língua mais acessível.

Hoje, o mundo livre volta a estar sob enorme pressão. Até nos EUA, outrora um farol para a democracia e liberdade de expressão, indivíduos estão a ser presos por expressarem as suas opiniões sobre questões globais. Tal como Espinosa, não devemos ter medo de lutar pelo nosso direito à liberdade e à livre expressão, mas qual será a melhor e mais eficaz forma de o fazer? De que modo podemos ligar-nos, em vez de nos dividirmos? Talvez os nomes destes 135 jornais pioneiros – cada um deles uma janela para um mundo livre impaciente por emergir – contenham algumas das respostas.

Tetsumi Kudo

No mundo patriarcal, o pénis é um símbolo de disputa – o orgulho do homem e o seu suposto poder sobre os outros. Mas é também a sua parte mais delicada, capaz de o humilhar se não for respeitada. Representa, simultaneamente, uma força patriarcal e uma fragilidade.

Em Untitled (1974), do artista vanguardista japonês Tetsumi Kudo, pénis humanos transformam-se em criaturas semelhantes a lesmas, com os seus corpos moles encerrados em conchas. Cores fluorescentes brilham contra a decomposição orgânica do lírio-do-vale (um símbolo de renascimento), enquanto um copo remete para um mundo frágil e autónomo. Cabe ao espectador decidir como se sentir face a esta trama. Espinosa poderia vê-lo como um ecossistema perfeitamente lógico, onde pénis e lesma são apenas dois modos da mesma substância – Natureza/Deus – sem que nenhum seja superior. Mas para o patriarca, que acredita que o homem deve conquistar tudo o que é mutável e suave – uma lesma, uma flor, até uma mulher –, esta visão pode parecer grotesca, por refletir de forma indesejada a sua própria vulnerabilidade.

Kudo explorou frequentemente temas como a ecologia, a evolução e a tecnologia. Já nos anos 60, alertava para a poluição e começou a criar instalações semelhantes a estufas. Concebeu uma “Nova Ecologia” onde humanos, natureza e máquinas coexistem e se alimentam mutuamente – como insetos e plantas, ou nervos e células musculares. Uma visão que ecoa a de Espinosa: um mundo onde tudo, animado ou inanimado, provém da mesma origem e permanece profundamente interligado.

A ironia é que a tecnologia, criada pelo homem, pode roubar-nos certas formas de dignidade humana, da mesma forma que nós as retiramos a outros seres. Mas para Kudo, a tecnologia também abre espaço a um novo e fértil estado, um estado de transformação e decadência mútuas, onde novas formas de comunicação podem surgir. A grande questão que decide o nosso futuro neste planeta é: conseguimos aceitar este entrecruzamento e evoluir dentro dele, ou continuaremos agarrados à nossa superioridade imaginada, presos numa horrível luta de jaula?

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Emma Talbot

Mother Earth é uma ode pessoal à geradora da vida e à história da origem de todos nós – nascidos das nossas mães, mas também nascidos da Mãe Terra. À sua maneira – inspirando-se em histórias de família, assim como em mitos clássicos, poemas de T.S. Eliot e nos trabalhos de filósofas feministas como Luce Irigaray e Hélène Cixous – Emma Talbot cria uma narrativa poética que pode ser compreendida a um nível racional, mas talvez ainda mais profundamente a um nível emocional.

O subconsciente desempenha um papel central na obra de Talbot – não só como uma valiosa biblioteca de impressões pessoais a serem expressas, mas também como um meio através do qual o espectador recebe a sua mensagem. Embora Espinosa tenha reconhecido o poder do subconsciente e como este impulsiona muitas das nossas ações, acreditava que o maior feito de uma pessoa esclarecida era moderar essas forças – observá-las sem agir sob a sua influência, e usar a razão para se libertar do tormento das nossas paixões subconscientes e imprevisíveis. Talbot parece adotar uma posição diferente da dos filósofos do Iluminismo, especialmente da sua grande inspiração: Espinosa. No entanto, podemos notar na sua obra uma certa afinidade com ideias iluministas. Indícios deste pós-iluminismo estão também presentes na obra de Espinosa: a sua rejeição do livre-arbítrio ou o seu panteísmo, que pressupunha um mundo muito mais holístico do que aquele concebido por muitos pensadores iluministas.

Ainda assim, Talbot adota uma abordagem mais permissiva em relação às nossas paixões. Em Mother Earth, testemunhamos como nós – e os nossos desejos – somos moldados pela natureza, pela educação e pelas construções sociais. Contudo, a obra não rejeita nem julga estas influências, parecendo, em vez disso, simplesmente dizer: é assim que é, é assim que somos – em toda a nossa beleza e em todo o nosso terror.

Thomas Hirschhorn

Tanto Espinosa como Thomas Hirschhorn acreditam que a contemplação, por si só, não é suficiente. Para artistas e filósofos – e qualquer pessoa envolvida no pensamento crítico – o envolvimento ativo com o mundo é essencial. Hirschhorn, cuja obra frequentemente dialoga com ideias filosóficas, leva a sua arte para o espaço público, procurando provocar encontros inesperados. Em Amesterdão, criou o Spinoza Monument e, mais tarde, o Bijlmer Spinoza-Festival.

Where Do I Stand? What Do I Want? é uma coleção vibrante e confrontativa de ensaios que combinam a experiência vivida de Hirschhorn, imagens visuais radicais e influências filosóficas como Espinosa, Gramsci e Deleuze. Sobre estes pensadores, Hirschhorn escreve: “Eles dão força para pensar, dão força para agir.” O fio condutor é a coragem: a coragem de falar, de tomar posição e de agir.

Hirschhorn declara-se fã de Espinosa, no sentido mais devoto da palavra. Em 2012, chegou a personalizar um carro em homenagem a Espinosa, tal como se poderia fazer com o clube de futebol preferido. Diz que adora a Ética de Espinosa pela sua força, universalidade e, sobretudo, por ter inventado uma forma. Essa é, segundo Hirschhorn, a ambição de qualquer filósofo e artista: criar uma forma. Mesmo que o conteúdo de uma obra não seja totalmente compreendido, a sua forma pode ainda ser apreciada – e, talvez mais importante, tornar-se um veículo para a ação.

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Simon Fujiwara

Na obra A Whole New Who? do artista britânico Simon Fujiwara, vemos um ursinho de peluche que foi literalmente reconstruído. Ele lê livros com títulos como Aceita-te a ti mesmo, Acolhe a tua tristeza, Sê sempre feliz e Todo um novo eu. Estes títulos encerram em si a promessa de uma versão ‘melhorada’ de nós mesmos – desde que adotemos a mentalidade certa, apliquemos as técnicas certas e escolhamos as emoções corretas. A obra aborda uma busca – ou mesmo uma luta – muito contemporânea por uma espécie de iluminação individual.

De entre todos estes títulos, Espinosa talvez escolhesse Aceita-te a ti mesmo. Para ele, a iluminação não vem da busca de um ideal ou da tentativa de nos tornarmos numa nova versão de nós próprios – vem da aceitação daquilo que se é. Forças como as emoções e as opiniões, segundo Espinosa, não devem ser aperfeiçoadas ou dominadas, mas sim compreendidas. Acumular pilhas de livros de auto-ajuda ou seguir um novo guru todos os dias apenas nos torna mais prisioneiros dessas forças externas.

Devemos conceber-nos como expressões de uma única Natureza (ou Deus), em vez de egos ou almas independentes. Para Espinosa, a liberdade reside em observar o nosso lugar no mundo, reconhecer todas as forças que nos influenciam e compreender de que modo nos afetam – e não em agir impulsivamente com base nelas. Compreender-se a si próprio, então, não é um exercício egoísta. Muito pelo contrário: é o caminho para compreender o nosso lugar dentro do todo maior.

Falke Pisano

“O conhecimento é continuamente criado e recriado à medida que as pessoas refletem e agem sobre o mundo,” escreve a artista Falke Pisano. O conhecimento, acredita a artista, exige sujeitos que tanto o adquiram como o produzam – sujeitos que se confrontam com o mundo. Esta concepção de sabedoria espelha de perto a posição de Espinosa, que rejeitou o dogmatismo e visões rígidas. Em vez disso, o filósofo argumentava que o conhecimento é um processo dinâmico, continuamente aprimorado pela experiência e pela troca.

Mesmo a matemática – uma ciência frequentemente associada à precisão – não é uma forma rígida de conhecimento. É um modo de compreender o mundo que nos ensina a pensar de forma abstracta. Ao treinarmos o nosso pensamento matemático, podemos melhorar o nosso raciocínio noutras áreas da vida, e vice-versa. A matemática é moldada pelo nosso contexto, conhecimento e pensamentos. Ou, como escreve Falke em The Value of Mathematics: Negotiations in Exchange: “Diferentes visões do mundo e as experiências quotidianas dos indivíduos explicam estratégias diversas de raciocínio matemático, baseadas em diferentes formas de resolver dilemas aritméticos, conflitos e tensões.”

Talvez de forma lógica, a prática artística de Falke nasce de um processo semelhante: pensar, reflectir, abstrair. A sua obra explora como, onde e através de que processos um objecto artístico é criado e investido de significado. Muitos dos seus projectos desenvolvem-se numa espécie de ciclo ou sequência de vários anos, a partir da qual emerge um tema. O trabalho de Falke não só ecoa as ideias de Espinosa sobre conhecimento, como a interconexão dos seus corpos artísticos reflecte também a sua crença na interconexão fundamental de todos as formas de vida.

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Eylem Aladogan

A obra de Eylem Aladogan explora frequentemente temas como a força e o poder – em especial, a geração da força de vontade. Aladogan sugere que a resistência, em vez de ser evitada, pode ser acolhida e até utilizada como catalisador para o despertar essa força interior. Numa das suas muitas instalações, a artista apresenta um bico solitário montado numa estrutura semelhante a uma besta, feita de corda, madeira e pedra. Embora a escultura permaneça imóvel, evoca uma sensação de movimento para a frente; e percebemos a dinâmica das forças em ação para o alcançar.

À primeira vista, isto parece contrastar com a filosofia de Espinosa, que negava a existência do livre-arbítrio. No entanto, observando mais de perto, as semelhanças entre a visão de Aladogan e o pensamento de Espinosa tornam-se mais evidentes do que as suas diferenças. Mais precisamente, Espinosa rejeitava a ideia de uma vontade que existisse de forma independente. Em vez disso, acreditava que as nossas ações resultam de múltiplas forças em oposição. Mas, através da compreensão dessas influências, acreditava que poderíamos agir com intenção e propósito.

Isto abre caminho para uma reflexão mais ampla sobre o controlo, conceito que também interessa a Aladogan. Quanto controlo temos realmente? Será sempre sensato exercê-lo, ou haverá momentos em que é mais sábio deixá-lo ir e permitir que os acontecimentos sigam o seu curso? Estas são questões particularmente relevantes em tempos de profunda interferência humana, cujos efeitos secundários são imprevisíveis. As obras aqui apresentadas, Endless Endless e Glasshouse, parecem oferecer duas respostas possíveis: numa estufa (glasshouse), gostamos de projetar um ambiente delicado e controlado, enquanto Endless Endless sugere a natureza incessantemente mutável e transformadora do mundo.

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