A Vida de Spinoza – Da Vidigueira a Amesterdão
Bento de Espinosa, também conhecido como Baruch ou mais tarde Benedictus, nasceu em 1632, em Amesterdão, filho de refugiados judeus portugueses. O seu pai, Miguel d’Espinosa, filho de um rico comerciante, era natural da Vidigueira, onde a família viveu durante gerações. Após a expulsão dos judeus durante a Inquisição em Espanha e Portugal, em 1492 e 1497, muitos – incluindo os Espinosa – fugiram da Península Ibérica. Fizeram uma breve paragem em Nantes e acabaram por encontrar refúgio na relativamente tolerante Amesterdão. A cidade, desde a queda de Antuérpia, tornara-se o novo centro marítimo e comercial, e um lugar onde a vida judaica podia, com cautela, florescer novamente.
Espinosa cresceu no vibrante bairro judaico de Amesterdão, ‘Vlooienburg’, habitado maioritariamente por judeus sefarditas, que aí construíram as suas sinagogas – a grande Sinagoga Portuguesa ainda hoje se mantém de pé. Foi educado na tradição judaica, mas depressa se deixou cativar pelas novas ideias radicais da sua época – especialmente pela filosofia de Descartes e pelas descobertas da ciência emergente.
Em 1656, Espinosa foi excomungado da comunidade judaica, provavelmente devido às suas ideias pouco ortodoxas. A excomunhão significava uma exclusão total; por outro lado, também lhe ofereceu liberdade para pensar e escrever sem restrições religiosas. Aprendeu latim, integrou um círculo de livres-pensadores e cientistas, e sustentava-se a polir lentes ópticas, utilizadas, entre outros, pelo reputado cientista e astrónomo Christiaan Huygens. Não apenas os seus pensamentos, mas também as suas lentes, ofereciam às pessoas uma visão mais profunda da vida.
Embora cauteloso em relação à publicação das suas ideias, Espinosa ousou expressar-se. O seu Tratado Teológico-Político, publicado anonimamente em 1670, foi uma ousada defesa da liberdade de pensamento e de expressão, mantendo ligações estreitas com amigos e intelectuais de toda a Europa. Viveu uma vida modesta e independente, preocupando-se mais em alimentar a mente do que entregar-se aos prazeres do corpo. Diz-se que, nos últimos anos de vida, se alimentava apenas de passas e papas de leite. Alguns chamavam-lhe ‘Senhor Espinafre’, em alusão ao vegetal que se dizia nutrir o cérebro.
Espinosa morreu em 1677, aos 44 anos, muito provavelmente de tuberculose. Acredita-se que o pó produzido pelo trabalho a polir lentes tenha enfraquecido os seus pulmões e contribuído para o debilitar da sua saúde. A sua obra filosófica – considerada perigosa na altura – foi rapidamente banida, mas continuou a circular clandestinamente. Com o tempo, as suas ideias ajudaram a moldar a filosofia, a ciência e a democracia modernas.
E, de certa forma, tudo começou aqui, na Vidigueira, terra natal do seu pai – onde uma mente radicalmente independente lançou raízes.
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Cristina Lucas
Em To the Wild, Cristina Lucas reinterpreta um antigo método de humilhação e exílio. No método de “alcatrão e penas”, era cortado cabelo de uma prisioneira, o seu corpo coberto de alcatrão e depois de penas, sendo em seguida exibida pelas ruas e deixada fora da cidade. Outrora um castigo comum, neste trabalho de Lucas o ritual de exílio transforma-se num meio de reconexão com a natureza e de reencontro com o lugar que se ocupa na ordem natural das coisas – uma ordem que podemos, segundo Espinosa, sentir através da forma mais direta de pensamento: a intuição. A própria artista escreve que os pensamentos de Espinosa a acompanharam no seu processo de ligação profunda à natureza.
Espinosa também foi excomungado da sua sociedade: a comunidade judaica de Amesterdão. As suas ideias desafiavam as tradicionais visões sobre poder e religião vigentes naquela comunidade. Ainda assim, acreditava que as sociedades são uma extensão natural da natureza humana. Tal como os indivíduos são partes indispensáveis de Deus/Natureza, as sociedades também o são. Formam-se a partir da ligação entre necessidades e desejos recíprocos. No entanto, a obediência a uma sociedade ou Estado deverá estar enraizada na razão e no interesse comum, e não numa submissão cega.
Embora a intuição seja o nosso conhecimento mais imediato do mundo, Espinosa defendia que devemos usar a razão para compreender as causas do que sentimos ou experienciamos. Só assim poderemos libertar-nos de uma vida passiva, guiada pelas emoções. Ao mesmo tempo, a sociedade em que vivemos pode obscurecer o nosso raciocínio, tornando necessário libertar-nos do seu pensamento dogmático.
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Navid Nuur
As obras de Navid Nuur envolvem frequentemente elementos naturais – cinzas, luz, ar, lágrimas – para criar experiências que despertam o maravilhamento. Chegaram mesmo a chamá-lo de alquimista dos tempos modernos, pela forma como funde materiais em novas substâncias. No entanto, como o próprio artista sublinha, a sua arte não é esotérica. Oferece, antes, um ponto de partida para a reflexão.
Espinosa provavelmente teria apreciado o trabalho de Nuur por várias razões. Espinosa rejeitava a existência de milagres, argumentando que aquilo que as pessoas percebem como maravilhoso são apenas fenómenos naturais e científicos ainda não compreendidos. Ambos partilham também um profundo respeito por todos os elementos materiais como partes iguais de um todo maior – nenhum sendo intrinsecamente superior aos outros. Como Nuur disse uma vez, não vê diferença entre trabalhar com um ser humano, uma sala, um feixe de luz ou uma igreja.
Uma afinidade final entre o filósofo e o artista revela-se na obra Ours de Nuur, que apresenta uma imagem microscópica de uma lágrima humana – presumivelmente a sua. Visto de perto, o sal seco cristalizou-se em pequenas formações que lembram paisagens. A lágrima transforma-se num mundo em si mesma. Numa carta a Henry Oldenburg, Espinosa usa uma metáfora semelhante para explorar a noção de perspectiva. Ele imagina um verme do sangue a viver numa gota de sangue, percebendo as pequenas partículas dessa gota como uma realidade autónoma. O verme, devido à sua visão limitada, desconhece que existe dentro de um corpo maior.
Da mesma forma, quando examinamos uma lágrima amplificada por uma lente, descobrimos cristais, bactérias, invisíveis a olho nu. Aquilo que parece simples torna-se complexo, dependendo da perspectiva e das ferramentas que usamos. Se esquecermos isto, nunca compreenderemos verdadeiramente a natureza do mundo. Pois, neste mundo complexo e interligado, tudo depende de tudo o resto e nada pertence realmente apenas a um de nós; pertence, antes, a todos nós, a Ours.